Por la noche porteña

“Um tango, vamos dançar um tango!”, disse Enrique para Clara enquanto caminhavam sem rumo por San Telmo. A noite já havia chegado e estavam na terceira garrafa de vinho. As luzes de Buenos Aires eram inspiradoras e transformavam a rua em um palco iluminado. Enrique e Clara tropeçavam nos próprios pés embriagados e tentavam manter, em vão, alguma firmeza nos passos daquela dança que seguia o toada da buzina dos carros.

Bastidores

Lá estava a bailarina, no camarim, deitada sobre o figurino. A maquiagem borrada formava o caminho denso de uma lágrima negra. Segurava em uma das mãos um bilhete e na outra restos de tecido do vestido que acabara de rasgar. Soube que naquela noite não haveria quem lhe entregasse rosas após o espetáculo.

Aula de português

As duas moças cochichavam no canto da sala de aula. Trocavam risinhos e bilhetes secretos aos olhos do inocente professor, que falava algo sobre orações subordinadas. As meninas do canto da sala pareciam pouco interessadas no tema da aula, mas muito atentas ao professor. Ele mal podia imaginar que elas armavam um plano minucioso para sequestrá-lo.

Manhã no ateliê

Olhou a tela, as cores, as formas e avaliou o pouco que faltava para terminar aquele quadro encomendado. Há meses ensaiava terminar aquela pintura, mas não conseguia e a tendência era que terminasse por rasgar a tela inteira antes do fim – e talvez por isso mesmo houvesse um fim. O fato é que as bisnagas de tinta, pincéis espalhados e outra tela branquinha esperando por pinceladas livres representavam um atraente recomeço, muito mais instigante que algo que já estava perto do fim.

Sala de embarque

Estavam os dois esperando o momento de embarcar. Cada um para uma cidade e por motivos distintos. Ela o olhou em silêncio e ensaiou um sorriso tímido. “Deixe seus compromissos, que deixarei os meus. Nada disso mais importa, meu amor. Vamos fugir para Praga e respirar os ares de Kafka?”, pensou, mas não disse. Ele a olhou esperando algum sinal, mas ainda não podia escutar pensamentos.

Fim de hesitação

Finalmente aceitou o convite que a vida oferecia há tempos com insistência. Vestiu-se de coragem e medo – a contraditória harmonia dos ansiosos – e caminhou pelos rastros que o tempo deixara ao passar tão sorrateiro. Encontrou sorriso e olhares em alguém que também parecia não poder esperar mais. Peles úmidas, bocas famintas e respirações descompassadas deram início aos lances do jogo que só terminaria em empate. De olhos fechados e bocas secas, perderam juntos o ar por alguns segundos. Era apenas uma pequena morte.

Entre a coxia e o palco

Dora tinha as sobrancelhas espessas e o sorriso debochado. Ninguém conhecia a fundo a história dela e o mistério que a envolvia a deixava ainda mais atraente. Conversava sobre qualquer assunto com graça e tornava qualquer tema interessante. A voz era rouca e grave, talvez por causa do cigarro ou por tanto soltá-la com fúria ao vento. Achava que a vida era um constante ensaio, aquele último que precede o espetáculo. Amores não a prendiam e paixões instigavam laboratórios das personagens que criava para ela própria.

Mas, naquele dia, Dora sabia que o último ensaio estava no fim e preparou-se para o espetáculo que tanto esperara. Vestiu-se com um longo vestido vermelho, da mesma cor do batom e da rosa que prendia a trança de cabelos negros. Apagou as luzes. Olhou-se no espelho e só conseguiu ver a silhueta desenhada pelo feixe de luz fina que entrava pela janela. Sentou-se na poltrona e fechou os olhos. Era o que bastava para a epitasis.